A discussão, cada vez mais intensa nas redes sociais, têm jogado luz sobre a maneira como o abuso acontece: muitas vezes sutilmente, a ponto de a própria vítima não perceber por anos a fio. Relação abusiva não necessariamente envolve violência física ou agressão e, pior, as atitudes abusivas muitas vezes vêm disfarçadas de comportamentos que parecem demonstrações de amor.
Foi o que aconteceu com Laura (nome fictício, ela preferiu não se identificar por questões e segurança), que passou anos entendendo as atitudes controladoras do marido– para ela, sinais de cuidado e carinho.
Segundo a ONG “Love is respect”, as seguintes atitudes são marcas de um relacionamento abusivo: ciúme excessivo, constantemente te colocar para baixo, invadir e-mail ou celular, te isolar de outras pessoas, mudanças de humor, comportamento explosivo, entre outras.
O marido de Laura apresentava diversas dessas características, mas sabia disfarçar. Só depois de uma agressão física o abuso ficou claro para ela.
“Com presentes, ele controlava minhas roupas”
“Eu conheci o Igor (nome fictício) há 20 anos. Ele me travava muito bem, e eu fiquei apaixonada. O comportamento dele já era controlador, mas eu não via. Começou com os presentes. Tudo que eu escolhia ou comprava para mim, ele substituía por algo que considerava melhor. Eu me lembro de a gente passeando no shopping… Eu adorava uma blusa e logo ele vinha dizer: ‘Isso não combina com você, você merece algo muito melhor’. Na hora, aquilo parecia lindo, mas, com o tempo, eu me vi passando a usar as roupas que ELE escolhia, e não mais as que eram do meu gosto.
E mais: Igor sempre me dava coisas que eu não podia comprar, melhores do que as que eu tinha. Que fofura, né? Eu também achava encantador, mas hoje vejo que isso era uma forma de ele me diminuir, porque não dava só os presentes, mas enfatizava que estava fazendo algo que eu não poderia sozinha. Minha família e meus amigos, assim como eu, achavam Igor um ótimo provedor, com quem eu poderia formar família. Outra ‘fofura’ que ele sempre fazia era aparecer de surpresa um pouco antes do final do expediente para me buscar no trabalho. Com isso, também acabava sabendo de todos os meus passos e evitando que eu saísse sozinha.
“Cursos, home office: ele garantiu que eu não voltasse para o mercado”
“Logo no começo do namoro engravidei e fomos logo morar juntos. Ele era doido por mim! Tão doido que não conseguia nem me imaginar perto de outros homens. Por isso saía comigo sempre, ia aos eventos da família, estava sempre presente. E todo mundo o adorava.
Nessa época, eu estava desempregada e, depois do parto, conforme meu filho foi crescendo, eu quis voltar a trabalhar. Mas era só eu surgir com o papo de trabalhar que ele me convencia de que não precisava.
Primeiro era a história de que ele ganhava bem o suficiente, que eu ficaria cansada, que não precisava disso. Depois, me convenceu de que eu devia fazer outras coisas antes, como melhorar meu currículo para entrar no mercado melhor ainda. E se ofereceu para pagar cursos para mim. Vai dizer que não é maravilhoso?
Eu me animei, fui estudar para ser web designer. Foram dois anos me preparando e, quando finalmente me formei, ele se ofereceu para investir no meu trabalho. Eu não precisava ser funcionária de ninguém, não precisava de um chefe. Ele investiu para eu montar meu home office e ter meus próprios clientes. Mas sabe o que isso significou? Significou que eu fiquei longe do mercado, sem poder crescer profissionalmente. Claro, e ele tinha total controle sobre o que eu fazia, o quanto eu ganhava e quem eu via.
“Eu me altero porque eu te amo”
Tivemos nosso segundo filho e, apesar de eu não viver mais o relacionamento dos sonhos, também não era um pesadelo. Ainda. Aos poucos, ele foi se tornando agressivo. Se eu falava ao telefone e ele achasse que era outro homem, simplesmente quebrava o aparelho. Depois vinha pedir desculpas. “Eu fico nervoso, me altero porque te amo, tenho ciúmes”. Sabe?
Então me dava um celular novo, melhor que o anterior. Ah, e na frente da família e dos amigos se gabava do presente maravilhoso que tinha me dado. Enquanto isso, ia vagarosamente diminuindo minha autoestima. Comentava que engordei, fazia com que me sentisse incapaz, ressaltava o quanto eu dependia dele. E eu ia acreditando, achando que eu não merecia nada melhor, sempre me sentindo por baixo. Por isso, mesmo quando comecei a perceber que queria sair do relacionamento, não conseguia. Onde eu iria achar alguém melhor? Será que não era eu que provocava as coisas ruins?
“Precisei de medida protetiva para sair”
A força para sair disso só surgiu quando meu filho mais novo ficou doente. Com diabetes tipo 1, ele ficou muito mal e acabou passando um tempo na UTI. Nesse período, eu pude refletir sobre a minha vida e tudo que vinha passando, enquanto o Igor mal aparecia para visitar o filho. Foi quase um ano assim. E, quando meu menino saiu do hospital, eu decidi terminar o relacionamento.
Mas foram anos para eu conseguir de fato. Ele ignorava minhas decisões, insistia e até me convencia a tentar de novo. No ano passado, decidi seguir com a vida e comecei a namorar outra pessoa. Não é que o Igor descobriu e começou a me ameaçar de morte? Aquilo era demais e eu precisava proteger meus filhos. Com o áudio da ameaça em mãos, fui à polícia, fiz nova queixa e pedi medida protetiva. Desta vez com um advogado, para garantir que tudo funcionaria.
Ele foi obrigado a sair de casa, e estou podendo respirar, finalmente. Tentando retomar minha vida! Pena que perdi tanto da minha vida com ele. Queria ter podido perceber os sinais de abuso lá atrás, e é por isso que conto minha história. Espero que outras mulheres não caiam no mesmo erro que caí.”